Texto de autoria de Aleluia Heringer, originalmente publicado nos portais ANDA e Defesa da Fauna, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
A primeira prova que temos da domesticação de cavalos é do ano 4.000 a.C., na Ucrânia, segundo Jared Diamond no seu livro Armas, Germes e Aço. Em seu estudo, ele diz que, de todas as espécies de animais existentes acima de 37 quilos, somente 14 se mostraram aderentes à domesticação e, destas, somente cinco se espalharam e passaram a ser utilizadas em todo o mundo. São elas: a vaca, a ovelha, a cabra, o porco e o cavalo. O que esses animais têm em comum? As características sociais, tais como: vivem em rebanhos; ocupam a mesma pastagem; têm uma ordem estereotipada; e mantêm uma hierarquia de dominação bem desenvolvida, que foi assumida pelos humanos. Ser domesticado significou perder a liberdade e ter a procriação e alimentação controladas. Uma vida particularmente difícil, não exatamente pelo “modo como eles morrem, mas, acima de tudo, o modo como eles vivem”, como diz Yuval Noah Harari no seu livro Sapiens.
No momento, irei me deter na figura do cavalo. Pela sua forte estrutura e agilidade, foi exaustivamente utilizado, exaurido ao máximo de suas forças. Cavalos estão presentes ao longo do livro Guerra e Paz, de Leon Tolstói. Mesmo sendo coadjuvantes da história, não passam despercebidos em cenas dramáticas, quando “por toda a parte havia cadáveres de cavalos e de homens, em variado estado de decomposição (página 1290 – Capítulo XIII). Foi decisivo no campo e como meio de transporte. Impressionante o relato de Andrea Wulf, no livro A invenção da Natureza, quando narra a última viagem do naturalista alemão Alexander Von Humbold, em 1829. Com um comboio de três carruagens, Humbold “percorreu 16.093 quilômetros em menos de seis meses, passando por 658 postos de correio, e usando 12.244 cavalos”.
Estamos no ano 2021. As guerras não são mais com cavalarias. Não viajamos mais a cavalo. Desde a década de 60, a população brasileira é urbana. Nossas cidades são áridas, ruidosas, cimentadas e sem arborização. Nesses centros urbanos, não há mais áreas de pastagens, com sombra e água. Quando velhos, cavalos se tornam incapazes para puxar a carga. Para onde vão? Quem irá cuidar? Afinal, estamos falando de um mamífero de, em média, 500 quilos, que demanda espaço e dinheiro para acessar um veterinário, comprar remédios e se ocupar em alimentá-lo diariamente. São inúmeros os casos dos “descartados”, quando perdem a utilidade. São resgatados, muitas vezes, desorientados, doentes, feridos e esfomeados. A fatura tem caído no colo de voluntários, socorristas ou de ONGs que, sem estrutura e recursos, estão na linha da frente atuando no resgate.
Esse problema tem um forte apelo social, devido a sua interface com aquele que guia a carroça: o carroceiro, que ainda depende do cavalo para a sua sobrevivência. Alguns grandes centros urbanos, felizmente, já legislaram no sentido de realizar a substituição gradual das carroças para veículos de tração motorizada. O importante é que as alternativas para a solução do problema, sejam dignas, humanitárias e justas com os carroceiros e com os cavalos.
A humanidade, tardiamente, se desculpou diante de muitas atrocidades do passado e que hoje nos envergonham. Pelo reconhecimento a todo o bem que a humanidade, até agora, usufruiu à custa dos cavalos, chegou a hora de dar a eles a licença para que sejam livres e abolir, definitivamente, essa exploração do nosso meio. Quero acreditar que, se fomos capazes da proeza de levar para Marte o robô Perseverance da NASA, após quase sete meses de viagem, teremos também a capacidade de dar uma resposta adequada a esse quadro que envolve a miséria do carroceiro e o sofrimento e escravidão do animal. Que possamos escolher a via do diálogo, da libertação, da compaixão e da responsabilidade social.