Para se alimentar, basta a terra!

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Para se alimentar, basta a terra!

Aleluia Heringer – julho de 2022

Texto produzido para a Revista Grande Sinal - Revista de Espiritualidade e Pastoral: v. 76 n. 02 (2022): MULHERES, SINODALIDADE E LAICATO

MOTIVAÇÃO INICIAL

Segundo Leonardo Boff (2012), os nossos ancestrais, após a colheita, não comiam sozinhos, mas antes, “distribuíam os alimentos e comiam-nos comunitariamente.  Com o passar dos tempos a ideia não era somente cozinhar, mas dar sabor aos alimentos.  Consumir “comensalmente” é comungar com os outros que conosco comem. É comungar com as energias cósmicas que subjazem aos alimentos, especialmente a fertilidade da terra, o sol, as florestas, as águas e os ventos”[1]. Até aí tudo bem, contudo algo mudou radicalmente, não na mesa e nos pratos, mas nos bastidores da produção dos alimentos.

Nossos antepassados e até recentemente (metade do século XX) não lidavam com algumas das variáveis que nos afastaram léguas da nossa comunhão com “as energias cósmicas que subjazem aos alimentos”. Esta comunhão proposta por Boff, se aproxima da palavra “dieta” – no latim diaeta, que vem do grego díaita que significa “modo de vida”. Sim, comer fala de nossa vida. Ingerimos aquilo que será endereçado as nossas células e tecidos. Está em nossas mãos, a todo o momento, escolher a saúde, a vida e aquilo que nutre. Em troca, teremos em disposição e vitalidade.

Para além do benefício pessoal, ao montarmos nossos pratos, estamos acionando e fazendo parte de uma cadeia de produção que o alimento percorreu. Enxergar para além do cardápio é pensar na perspectiva da uma cultura ecológica compreende também alargarmos nossa visão em relação à pegada que deixamos com a nossa dieta ou modo de vida.

DIAGNÓSTICO

Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos, afirma Yuval Noah Harari (2016)[2]. Segundo este autor, no início do século XXI, o ser humano médio tem “muito mais probabilidade de morrer empanturrado no McDonald’s que de seca, de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda”. Por conta de uma dieta rica em açúcar, gorduras saturadas e pobre em fibras, chegamos em 2019 com o maior índice de obesidade dos últimos treze anos. Segundo a OMS, a obesidade é uma epidemia do século XXI.  No Brasil, mais da metade da população, 55,7%, tem excesso de peso[3].

Além do impacto na saúde das pessoas, impactamos o planeta. Seja no cenário mais otimista como o descrito no livro “Abundância: o futuro é melhor do que você imagina” (2012), bestseller no New York Times ou o mais pessimista como “A Terra Inabitável” (2019), de David Wallace-Wells, seja pelos relatórios do respeitado e conservador Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), a alimentação da população mundial é um assunto que entra em qualquer discussão séria sobre a crise climática que estamos vivendo. A produção global de alimentos já responde por cerca de um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa.

Nos bastidores da produção de alimentos provenientes da indústria animal, temos algo a considerar. Pesa sobre esses animais, que denominamos como domesticados para consumo humano o nosso maior distanciamento ético e afetivo. Por tradição, cultura, religião ou gosto pessoal, há um grosso véu que nos impede de enxergar maus-tratos ou crueldade na forma como eles nascem, vivem e morrem. Faz parte da nossa cultura que seja assim e ponto final.

A população brasileira é urbana desde a década de 60. A vida nos grandes centros urbanos nos afastou da convivência com o mundo natural. Nos cercamos de artificialidades e deixamos de acompanhar o que estava acontecendo no campo. A cortina fechada impossibilitou aos comensais avistar os bastidores onde ocorriam as mudanças. Uma delas é que o animal que pastava ou ciscava passou a ser considerado commodity = mercadoria e virou assunto de grandes investidores que movimentam a bolsa de valores.

O bezerro foi separado de sua mãe; o pintinho macho foi descartado por não ter serventia na indústria da galinha poedeira; o porco passou por um processo de engorda e a vida de um frango se resume em média a 40 dias, quando segue para o abate, apenas para citar alguns processos que coisificam o animal não humano.

Papa Francisco, na Encíclica Laudato si´, em vários trechos, nos alerta que devemos reconhecer os seres vivos não como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano (LS, vs.81). Afirma que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. (LS, vs.92) e que devemos reconhecer às outras criaturas o seu valor; e tratar com desvelo os outros seres vivos (LS, vs.211). Sua visão aponta para o entendimento que as diferentes espécies não são recursos exploráveis (LS, vs.33). Infelizmente, no lugar de mordomos, de cuidadores, transformamos as vidas dos animais em tormentas.

Os comensais que estavam à mesa não relacionaram que a alimentação baseada em produtos de origem animal tinha grande parcela de responsabilidade nas emissões de gases de efeito estufa. Não perceberam que os grãos com alto teor de proteínas, como a soja, que deveriam alimentar pessoas, estavam sendo desviados para produção de ração. A fome não era por falta de grãos, mas gerada pelo seu desvio e desperdício. Não se atentaram que ingeriam calorias vazias e gorduras saturadas e que o alimento não mais nutria. O sabor não era natural e muito menos vinha das frutas ou ervas frescas, mas falseado por ingredientes com os poderes de transformar fórmulas em qualquer tipo de sabor, cor, textura, regados a muito açúcar, óleo e sal.

Enquanto compartilhavam essa comida e praticavam a sociabilidade, não perceberam que as florestas estavam sendo derrubadas para abertura de mais pastos e que o cerrado estava tomado de latifúndios para plantação de soja. Perderam a cultura das hortaliças e dos alimentos provenientes da terra. O acervo gastronômico foi se perdendo e, no lugar, receitas baseadas na carne, leite, ovos e derivados ocuparam a paisagem e tornaram as pessoas viciadas, literalmente, dependentes da indústria. Essa, percebendo o interesse e o aumento de consumidores, acelerou cada vez mais os seus processos para atender tamanha demanda. O setor de marketing criou produtos e inventou novas necessidades. Os veterinários, para acelerar a produção, aperfeiçoaram os processos de inseminação artificial e os engenheiros propuseram novas instalações, cada vez mais exíguas.

Não perceberam que, no Brasil, o rebanho bovino superou o número de comensais. Esses milhares de mamíferos de quase 600 quilos precisavam de espaço, de comida, de água e tinham necessidades fisiológicas (média de 30 quilos de fezes/urina/dia/cabeça). Para abrir passagem e pastagem para rebanho e soja, povos tradicionais foram dizimados, rios contaminados e florestas queimadas. Os comensais não perceberam que seus corpos estavam com proporções/medidas exageradas que tiravam deles a mobilidade e a saúde.

REFLEXÃO

O ato de comer não encontra paralelo em nenhum outro componente de nossa vida. Consumimos várias vezes, todos os dias.  No âmbito de nossa alimentação podemos fazer escolhas que terão impactos na nossa vida, na vida de nosso planeta e dos animais. Contudo, constatamos que, como adultos não fomos alfabetizados ecologicamente e nutricionalmente. Não sabemos dizer onde encontrar as proteínas de origem vegetal; que os vegetais verde-escuros são excelentes fontes de cálcio; que as proteínas são formadas por aminoácidos essenciais e não são sinônimo de carne.

Que ação poderá valer para todos e que tenha o impacto da funda e da pedra? Sugiro uma proposta que uma criança ou um idoso, o letrado ou o analfabeto irá entender. Temos em nossas mãos uma arma poderosa e que poderá “frear a roda”, ou, frear o sistema produtivo responsável por: 39% da produção de lixo do mundo; pela poluição dos rios e lençóis freáticos; pela erosão dos solos; pela emissão de 18% do CO2, 37% do gás metano e 65% de óxido nitroso, liberados na atmosfera; por 70% do desmatamento da Amazônia; pelo desvio de grãos nobres que deveriam alimentar pessoas famintas ao redor do mundo, e que servem de alimento para “animais de abate”; e se não bastasse tudo isto, pela escravidão e morte cruel de bilhões de animais não humanos por ano. Estamos falando de seres sencientes, sujeitos de uma vida que nossa prepotência transformou em coisa/objeto/ produto.

O QUE PODEMOS FAZER

Tem pessoas que comem o dia inteiro e não se nutrem. Nutrir é algo bem mais complexo. Implica cuidado na escolha daquilo que iremos colocar na sacola do supermercado, tempo envolvido no preparo, até o momento em que o alimento chega ao prato e, por fim, como se faz essa refeição. Fazemos escolhas e muitas delas têm priorizado a praticidade e não a qualidade nutricional.

É possível uma transformação profunda começando unicamente com o nosso garfo, quando diminuirmos o consumo de proteínas de origem animal. Esta é uma resposta prática a muitos dos problemas que vivemos hoje e, a meu ver, uma tradução do “viver radicalmente”, proposto por Boff. Um “contrato ético” não poderá ignorar que somos parte de um complexo de sistemas vivos compartilhando com animais não humanos partes de um mesmo ecossistema global. Os princípios da interdependência, da parceria, da ética, dos processos cíclicos, para citar alguns, tornados possíveis pelas conquistas científicas, tecnológicas e culturais precisam orientar nosso modo de viver. O animal humano, não humano e a “Mãe Terra”, precisam ser alvo do mesmo olhar do cuidado.

O convite é para a abertura a um movimento de experimentar, testar e criar receitas e sabores. Resgatar o nosso rico e diversificado patrimônio de frutas, hortaliças, legumes, grãos e tubérculos. Está literalmente em nossas mãos, no garfo e na faca, o poder de impactar o mercado e exigir uma alimentação que seja condizente com a crise climática que estamos vivendo e com nosso conhecimento ético em relação ao trato com as outras espécies.

O fato de sermos onívoros já indica que podemos escolher aquilo que iremos ingerir. Se encontramos todos os nutrientes de que necessitamos para nossa saúde nos alimentos de origem vegetal, é sinal de que esta via precisa ser considerada. Não somos determinados a ingerir produtos de origem animal, é opcional. Se o fazemos, é porque “achamos gostoso”, por hábito (desde que nasci!), costume (sempre foi assim!), tradição (minha avó fazia assim!), cultura (comida mineira, baiana etc.) ou social (todo mundo come assim, ou se eu não comer, fica chato!). São inúmeras as razões, contudo nunca podemos dizer que “temos que comer”.

Tudo aquilo que é muito gostoso tem gordura, açúcar e sal. A indústria alimentícia sabe disso e, no limite, não terá escrúpulos em explorar. O desejável e tudo aquilo de que necessitamos para ter saúde está perto de nós: os grãos, os cereais, as frutas, oleaginosas, verduras e os legumes. Aqui há um universo de cores, texturas e sabores que podem se transformar em receitas deliciosas e atraentes. Não há o glamour da propaganda, mas o trabalho artesanal das mãos zelosas e comprometidas dos adultos.

Na música de Beto Guedes “Pela claridade de nossa casa”, ele diz “vem procurar um lugar onde a gente, para se alimentar, bastaria a terra”. Tão distante estamos dessa poesia! Em nossos pratos, tudo, menos os frutos da terra. Esperamos que seja, por enquanto!


[1] Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2012/10/15/comensalidade-passagem-do-animal-ao-humano/

[2]  Homo Deus: uma breve história do amanhã (2016, p.12)

[3] Fonte: http://saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45612-brasileiros-atingem-maior-indice-de-obesidade-nos-ultimos-treze-anos

https://grandesinal.itf.edu.br/GS

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